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Distimia - Zero

 Uma ideia, uma opinião.

Sobre a vida, sobre viver.

O custo que é pago. O troco que sobra.

Os que caminham contigo.

Os que pesam em suas costas.

O sentido do sistema. O projeto de exploração.

Dívidas financeiras e morais.

Juros psicológicos, espirituais.


Pra quem vamos vender nossos dias?

Como é feita a precificação?


Na origem, na cor

Na paixão, na dor

Na luta, no luto

No desespero do não pertencimento

No pertencimento inadequado


Qual o saldo?

Como ficará o balanço final?


De tanto esforço e nenhum lucro 

Para quem você trabalha?

De tanto esforço e pouco gozo

Quem aluga seus pensamentos, drena suas energias...


O fluxo do cansaço

Os pagamentos parciais

As dívidas que se renovam

As necessidades da vida nova

Para a qual fugimos para esquecer


Hoje sou eu

Amanhã os meus


Pesa a consciência

Existe uma escolha moral

Lutar contra um sistema quimérico

Ou apenas usar suas regras para reproduzir o mal

E, quem sabe assim


Deixar que os meus herdem a posição confortável

De exploradores

Saqueadores








VERMELHO E DE GOSTO PECULIAR


Não era exatamente uma visão confortável.

Era vermelho e tinha um gosto peculiar.

Ela pensou seriamente em chorar, mas de nada adiantaria, já que o mundo era um deserto particular.

 

Foi terrível o acidente.

A sorte a salvou.

Sim foi a sorte, esta magnifica “coisa” na qual ela sempre acreditou e sempre acreditaria.

 

Ela precisava de jogos. Aquele era o resultado de um jogo íntimo.

- Até que ponto eu posso chegar?

 

Certamente já havia ocorrido outrora, mas só agora ela tinha discernimento para horrorizar-se com o vermelho em suas pernas.

 

Foi estranho constatar que por dentro ela era líquida.

 

Levantou-se e correu para o gramado. Olhou para o caminho percorrido para certificar-se de que não desenhara um caminho em vermelho. Nenhuma gota. Tudo estava encrostado em sua pele. Teve vergonha.

 

O que iriam pensar os que olham de cima? Como voltaria para sua casa?

As perguntas não faziam sentido, pois já conhecia bem as respostas.

Era uma questão de coragem transformar as respostas óbvias em ação.

 

A grama estava queimada,

seus olhos lacrimejantes,

sua bicicleta ruborizada,

suas pernas cruentas.

 

Delongaram-se pouquíssimos segundos para que percebesse que sangrara,

e aquela consciência perduraria até seu leito de morte.

 

As nuvens anunciavam a proximidade da chuva.

Resoluta ergueu-se e ignorou a dor.

Colheu sua bicicleta, antes abandonada na sarjeta, e hesitou antes de montá-la novamente.

 

Apostou novamente na sorte,

e conseguiu bater o recorde de velocidade estabelecido pouco antes do acidente.

 

Tinha 6 anos e percebeu que sangrava, mas nada mudou.

Mesmo sangrando ela continuou.



VOCÊ QUER COMPRAR O QUÊ?


Ia – Comum

Um homem comum no ônibus/metrô/trem.

Ib – Comum

Um homem comum andando de skate.

II.b – Comuns

Os dois homens andam lado a lado em meio à multidão. 

II.a – Separação

Os dois homens se separam. 

II.b – Praça

Um dos homens pára na praça, arruma-se, bíblia em mão, começa a pregar de forma contundente.

II.c – Rua de comércio popular 

O outro homem está terminando de se arrumar. Coloca seu turbante, aborda uma transeunte e lê sua mão.

III.a – Arrecadação – Praça 

Um senhor, muito agradecido, convencido pelo pregador e sua bíblia, dá seu dízimo.

III.b – Arrecadação – Viaduto do Chá

Uma moça, muito surpresa e satisfeita, paga pelos serviços do “profeta de rua”.

IV – Revelação

Em um bar, cerveja na mesa, os dois homens, cigarros nas bocas, conversam e riem. O balconista se aproxima, eles pagam a conta, levantam e se vão. Na mesa deixam um cartão onde se lê: Vendemos conforto, não a verdade.

"Comfort Zone" de Paulo Zerbato


MONÓXIDO DE CARBONO


Um carro. Dentro fumaça. Dentro fumaça e uma menina. Motor ligado. Ao longe vem o pai. Correndo. Esbaforido. Engravatado. Ele chega. Cospe. É sangue.

MENINA
Por favor, papai... Por favor...

PAI
É só um instante...

MENINA
Por favor, papai... Por favor...

PAI
Eles ficaram com a chave. Será só mais um pouco.

MENINA
Quebre papai... Quebre...

“Ele” observa a cena a distância. “Ele” revela-se. “Ele” tem os pés descalços, a gravata desfiada, a roupa amarrotada e um crachá em branco.

ELE
Você.

PAI
Eu?

ELE
Sim, você.

PAI
Sim?

ELE
Tem horas?

PAI
Sim.
ELE
E?

PAI
Ainda é cedo...

“Ele” aproxima-se.

ELE
Cedo para quê?

PAI
Eu acho... Foi o que me disseram.

“Ele” aproxima-se mais.

PAI
Cuidado... Você vai pisar...

“Ele” pisa.

ELE
No seu cuspe. No seu sangue.

MENINA
Papai! Papai! Minha meia está ficando cinza! Cinza! Tudo está ficando cinza...

ELE
São vidros automáticos?

PAI
É... Eles ficaram com a chave...

ELE
...E com o controle.

MENINA
Por favor, papai... Quebre o os vidros. Por favor!

PAI
Eu não tenho forças...

ELE
Foi você quem decidiu.

PAI
Eles me chamaram de preguiçoso. Usaram a retórica!
ELE
Prometeram um aumento, férias ano que vem...

PAI
Não é fácil romper com eles...

ELE
Mas você prometeu para ela...

MENINA
Papai não me deixe dormir. Quando eu dormir todos estarão mortos! Mortos! Mortos!
Por favor, papai... Quebre o vidro.

ELE
Você prometeu que seria rápido.

MENINA
Mas ainda dá tempo, não é papai?

PAI
É só a minha hora de almoço... E eu esqueci as chaves... E eles sugaram minhas forças.

ELE
Mas você prometeu.

PAI
Eles têm contratos.

ELE
Ela é sua filha.

PAI
Você... É só um mendigo. É só alguém que pisou no meu cuspe, no meu sangue.

ELE
Olhe o seu relógio.

PAI
Meu deus! Já é tarde... Eu vou me atrasar...

ELE
Quebre o vidro. Ela está morrendo.

PAI
Talvez ela agüente até o final do expediente...


ELE
Não. Só temos mais alguns minutos.

MENINA
Por favor... Papai...

PAI
Eu preciso voltar.

MENINA
Papai... Quando eu dormir todos estarão mortos... Por favor...

ELE
Quebre o vidro!

PAI
E porque você não quebra?

Silêncio.

ELE
Eu já não posso…

PAI
E eu ainda dou ouvidos a um mendigo! Veja você! Olhe a sua barba, a sua roupa, os seus pés, o seu crachá... Filha eu volto logo...

MENINA
Por favor...

PAI
Eu não posso me atrasar...

O pai volta correndo.

MENINA
Papai...

ELE
Durma e mate a todos... Durma minha filha. Por favor... Durma...





O Pequeno Ensaio Sobre a Redenção

ENQUANTO ELE DORME
Aquilo que sobrou de todas as corporações, um prédio de 40 andares, está em chamas. O jovem executivo (terno, gravata e tênis) corre pela escada de incêndio rumo ao auge. Muita fumaça atrás do jovem, à frente escadas úmidas e escorregadias. Ele chega ao último degrau, entre ele e o auge do único prédio que ainda resta existe uma porta de aço na cor vermelha. O ambiente é opressivo, paredes que derretem e ar que não se renova. O aço, da última porta ferve. Não existe outra opção, o jovem terá que esperar por seu destino

QUANDO ELE ACORDA
Abre os olhos e vê o teto desabar aos poucos. São apenas goteiras, pois o teto é feito de água. Senta-se  aquilo que se assemelha a uma cama, percebe que ao seu lado dorme alguém. Levanta-se e percebe que o mundo não é mais tão sólido sob seus pés. O mundo é apenas a percepção de um velho até que se revele a criança.

PRESIDENTE
Quem é você?

MENINO
...e quem é você?

PRESIDENTE
...Que lugar é esse?

MENINO
O nosso lugar.

PRESIDENTE
Fui sequestrado? ...

MENINO
...é sério... Quem é você?

PRESIDENTE
Você não sabe quem eu sou?

MENINO
Não sei mesmo.

PRESIDENTE
Eu sou importante. E eu sei que não sou daqui.

MENINO
Este é o nosso lugar.

PRESIDENTE
...Nós estamos aqui. Mas quem é você? E quem é aquela pessoa na cama?

O garoto ignora a pergunta. O Presidente dirige-se até a cama e puxa o lençol que cobre a velha prostituta.

PRESIDENTE
Está morta?

MENINO
Eu ainda não entendo muito destas coisas...

PRESIDENTE
Ela está morta!

MENINO
Se você acha... Deve estar.

PRESIDENTE
Você não entendeu. Esta mulher está morta...

MENINO
Eu entendi sim. Ela está morta, né? Entendi direitinho. Morta... Pra ela acabou.

PRESIDENTE
Quem é ela?

MENINO
Caramba! E eu tenho que conhecer todo mundo?

PRESIDENTE
Não é sua mãe? Sua tia?

MENINO
Não. É estranho né? Você acordou ao lado dela e agora não sabe quem ela foi e não sabe quem você é.

PRESIDENTE
É claro que eu sei quem eu sou!

MENINO
Quem?

PRESIDENTE
É bem simples responder sua pergunta, veja:

Tira do bolso do terno uma carteira e procura por algum documento, qualquer identificação, mas na carteira só há dinheiro, muito dinheiro.

MENINO
Isso mostra que você é rico.

PRESIDENTE
Meus documentos sumiram.

Mexe em outros bolsos do terno, nos bolsos de sua calça e até em seu sapato. Em todos os lugares que mexe mais e mais dinheiro aparece.

MENINO
Quem é você?

PRESIDENTE
Alguém com muito dinheiro... Eu não consigo lembrar... Eu sinto que não sou daqui, mas não consigo saber de onde sou. Se eu ao menos tivesse algo que pudesse me ajudar... Um nome, uma foto...

MENINO
...um espelho?

PRESIDENTE
Isso! Um espelho! Onde?

MENINO
Logo atrás de você.

QUANDO O ENQUANTO NÃO SIGNIFICA O QUEM
O quarto miseravelmente composto ressoa a chuva, reverberando um miserável brilho cinzento.

EXECUTIVO
É só o que eu tenho.

PROSTITUTA
Isso sequer basta para...

EXECUTIVO
Tive que comprar os ternos... Mal deu para comprar os sapatos.

PROSTITUTA
Ternos? Passaremos fome para que você compre ternos?

EXECUTIVO
Eles exigem. Eu não poderia entrar... Eles não deixariam que eu entrasse se...

PROSTITUTA
Alguns quilos de arroz e algumas batatas.

EXECUTIVO
Agora só em 15 dias. Foi até generoso por parte deles... Eles não costumam adiantar os pagamentos.

PROSTITUTA
Terei eu então que ser generosa por mais algumas noites.

EXECUTIVO
Mãe você prometeu que não iria mais...

PROSTITUTA
É mesmo tão difícil ser um filho da puta?

EXECUTIVO
Mãe não fale assim.

PROSTITUTA
Filho... E nem sequer é um xingamento. Foi assim que a sua faculdade foi paga, foi assim que você se tornou o mais novo “funcionário” da maior corporação. Serão só alguns dias...

EXECUTIVO
Você já está velha... Está doente...

PROSTITUTA
Eles ainda precisam que eu o alimente... Farei meu papel de mãe.

QUANDO ELE ACORDA PELA SEGUNDA VEZ
Em frente ao espelho

PRESIDENTE
Deformado. Irreconhecível.

MENINO
É apenas você no espelho.

PRESIDENTE
Mas isto não responde que eu sou.

MENINO
Não?

PRESIDENTE
Não! Não posso ser apenas isso... Eu sei que sou mais. Como alguém que tem tanto dinheiro pode ter este rosto?

MENINO
O rosto é seu. Você é quem deveria saber como ele ficou assim.

PRESIDENTE
Este lugar miserável, esta mulher morta, meu rosto, minha memória, você...! Nada disto faz nenhum sentido. E esta chuva que não pára...

MENINO
Mas você está aqui e este é o nosso lugar.

PRESIDENTE
Pare de repetir esta ladainha! Definitivamente este não é o meu lugar!

MENINO
Mas não pode negar que está aqui.

PRESIDENTE
Não por muito tempo... Não por muito tempo...

O presidente abandona o local.


ENQUANTO A CHUVA O MOLHA
O jovem executivo em frente à porta vermelha.

EXECUTIVO
40 andares para chegar aqui. E é isso que me aguarda? O meu destino é esperar a morte em frente a uma porta vermelha? Eu subi cada andar sem hesitar em nenhum momento, e eu sei que não existia nenhuma promessa, nenhuma esperança... Mas é só isso? Hoje quando eu acordei e vi que tudo desabava, eu continuei... Vesti meu terno e corri para não chegar atrasado. Eu só quero fazer o meu trabalho. Eu não cheguei atrasado, eu só cheguei por último... Mas sou o único que buscou o céu quando tudo desabava. Eu só quero fazer o meu trabalho para que o céu continue onde está...


QUANDO ELE SE ENTRETÉM
O quarto miseravelmente composto. A cama miserável. O miserável bate à porta. A prostituta, como sempre, atende.

PROSTITUTA
Eu não esperava vê-lo novamente... Por que um homem rico como você ainda me procura?

PRESIDENTE
Alguns chamam de fetiche... Me conforta dormir com as putas velhas.

PROSTITUTA
Estou cansada... Não posso atender hoje...

PRESIDENTE
Não faz diferença... Eu venho apenas para dormir... Você sabe, eu só quero um pouco de paz.

PROSTITUTA
Hoje não vai dar. Eu preciso dormir só...

PRESIDENTE
Você sabe que eu pago bem...

PROSTITUTA
Hoje não.

PRESIDENTE
Por quê?

PROSTITUTA
Hoje eu também preciso de paz.

PRESIDENTE
Então eu alugo sua cama... Eu pago o suficiente para que você tenha paz no melhor hotel da cidade.

PROSTITUTA
Não seja ridículo.

PRESIDENTE
Não seja intransigente.

PROSTITUTA
A resposta é não.

PRESIDENTE
Por favor, não me faça implorar.

PROSTITUTA
Implore... Talvez isso me dê algum prazer.

QUANDO ELE ACORDA PELA ÚLTIMA VEZ
O Presidente está na sarjeta, dormindo sob a chuva. Abre os olho e vê “aquilo que sobrou de todas as corporações”. Ao seu lado o menino.

PRESIDENTE
Agora tudo está mais simples.

MENINO
...e quem é você?

PRESIDENTE
O dono deste prédio... O presidente da maior corporação deste planeta. Não tenho nome, sou apenas aquilo que represento.

MENINO
O seu nome é Joseph...

PRESIDENTE
Um nome nada representa. Eu sou aquilo que me tornei. Eu sou o único prédio que sobrou.

MENINO
Você é uma pessoa.

PRESIDENTE
Não... Sou apenas um experimento simbólico.

MENINO
Você é um homem. Os símbolos nada valem agora... Agora o importante é que você seja apenas humano.

PRESIDENTE
Agora é tarde. O que você pede está fora de alcance. Eu sou apenas isso que em instantes vai desabar.

MENINO
Levante.

PRESIDENTE
Por que você insiste?

MENINO
É a minha missão.

PRESIDENTE
Missão?

MENINO
Tudo está desabando, o seu prédio logo ruirá, e só restará a ruína deste mundo vertical.

PRESIDENTE
Já era hora!

MENINO
Venho para salvá-lo. Estou aqui para redimi-lo.

PRESIDENTE
Então perdeu a viagem.

MENINO
Joseph... Eu sei que você é um homem bom.

PRESIDENTE
Não acredite no marketing. Era só propaganda.

MENINO
Você é uma vítima e não o carrasco
.
PRESIDENTE
Está tentando me convencer?

MENINO
Por que você resiste?

PRESIDENTE
Se o seu trabalho depender de minha colaboração, desista. Eu não vou mentir para parecer melhor.

MENINO
Isto é bom. Você tem a consciência do erro.

PRESIDENTE
Definitivamente eu não sou a vítima.

MENINO
Mas você se arrepende?

PRESIDENTE
Agora é fácil.

MENINO
...Se arrepende?

PRESIDENTE
É evidente que sim.

MENINO
Era o que eu precisava ouvir. Você está redimido.

PRESIDENTE
Mas não pode ser tão fácil assim.

Nas costas do menino brotam asas.

MENINO
Levarei a noticia aos céus e então você poderá morrer em paz.

PRESIDENTE
Mas espere... Isso é um engano.

MENINO
Quando eu chegar ao céu tudo estará resolvido. Morra em paz Joseph.

O menino começa a bater as asas e logo em seguida está voando. Ele voa em direção ao céu. Ele está feliz, pois sua missão foi cumprida. Ele se aproxima do cume do prédio, mas não se dá o trabalho de olhar ao redor.

A porta vermelha está aberta. O terno está jogado no chão. No parapeito o executivo [tênis, camisa e gravata] aguarda de arma em punho. Ele olha pra baixo e vê seu alvo se aproximar. O alvo tem uma expressão de felicidade. O alvo se aproxima do cume. Ele engatilha, mira e atira. Ele estoura a cabeça do menino. O executivo matou o anjo. Seu trabalho está feito. O céu continuará onde está.